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Java Deja Ohm.

Não tinha nada grave. Uma gripe ou um resfriado qualquer. Ou uma infecção na gargante. Nunca soubera diferenciar ao certo. Escutou o som grave que o trem fazia quando estava vindo, olhando fixamente o espelho refletindo o bule de café e a cama desarrumada. Todas as coisas pelo chão e a banheira enchendo. Café colombiano ou javanês? Sabia que a Colômbia produzia bom café e boa cocaína. Ou pelo menos era isso que ouvira falar, junto com o Valderrama e Alvaro Uribe, enquanto Java dava nome à linguagem de programação, uma homenagem dos técnicos e seus insights cafeinógicos. Era um nome sem bandeira, sem presidente. Sem uma seleção. Mas era simpático. Já era noite e era seu último dia ali. Queria lembrar exatamente do som do trem, ter algum objeto para sua paranóia nostálgica. Mas agora ele se tornava agudo, fazendo-o lembrar do efeito doppler e das aulas de física, do avião e da ambulância. Âmbulância em Helvetica, vermelho sobre branco e invertido. Água torrente caindo sobre o garfo e a faca, num som agudo ritimado com o prata dos talheres. Vermelho sangue e prata, o agudo das agulhas. Talvez deveria se despedir de alguma forma, deixando uma carta ou um bilhete para aqueles com quem se importava. Mas não havia ninguém com quem se importava ali. Se sentia diferente, talvez por ter vindo de longe. Mas nem de longe deixava de ser diferente, talvez por isso tenha embarcado nessa. Fechou a torneira e percebeu o som da banheira, grave, profundo. Devia estar quase cheia e ainda não havia decidido pelo café. Colocou os talheres em cima do frigobar e caminhou em direção ao banheiro, para impedir o fluxo sonoro que saía do cano. Pode ouvir ainda mais claramente o som do trem, fazendo o caminho inverso para o grave mântrico. Entrou na banheira e fechou os olhos, submergindo aos poucos até esquecer o som do trem. Abriu os olhos e escolheu o café colombiano. Talvez pelo Valderrama, ou por Java não ter uma bandeira acenando dentro da sua mente. Não tinha nada grave e não sabia se tinha pensado nessa palavra pelo agudo do trem ou se o agudo do trem havia se antecipado cautelsosamente. Fechou a torneira da pia enquanto pensava na bagunça que teria que arrumar até a manhã do próximo dia, quando iria partir. Quase perdeu a introdução do som grave que o trem fazia quando estava distante, e sentiu-se vivendo uma mesma situação. Mas já estava na banheira, submergindo de olhos fechados, vagarosamente, enquanto seus ouvidos começavam a perceber os sons propagados através da água. Abriu os olhos e girou a maçaneta da porta, sem sucesso. Havia trancado-se para fora do quarto e teve que chamar um funcionário. Logo chegou uma camareira morena, seios fartos e cabelos negros. Sabia que era latina. Colombiana talvez? Nunca soubera diferenciar ao certo. Precisava de uma enfermeira também (e com seios fartos, claro). Com um daqueles quepes com uma cruz, vermelha sobre branco. Entrou no quarto e encontrou a banheira ainda semi-cheia. Ou semi-vazia? O chão repleto de coisas, que deveriam ser arrumadas até a manhã do outro dia, quando iria voltar para onde veio. O som grave que o trem fazia quando estava vindo e talheres sujos em cima do frigobar. Abriu a torneira e começou a lavar os talheres, sendo interrompido dos seus pensamentos pelo som grave que o trem fazia, quando vinha pelo elevado. Estava meio febril, nada grave. Talvez uma infecção na garganta. Precisava de um café para manter-se acordado; ainda não havia arrumado a mala. O som agudo do trem sugeria uma escolha: javanês ou colombiano?